Uma Visão Científica sobre a Função da Fáscia no Armazenamento de Memórias Corporais
Tradução e Análise: Dr. Marcello Alencar
A fáscia é um tecido conjuntivo que se estende por todo o corpo, envolvendo e interligando músculos, órgãos, ossos e vasos sanguíneos. Durante muito tempo, foi considerada apenas um tecido de suporte, com função de sustentação e conexão entre as estruturas corporais. No entanto, pesquisas recentes têm revelado que a fáscia desempenha um papel muito mais complexo, incluindo funções sensoriais, mecânicas e neurológicas. Um dos conceitos mais intrigantes que emergiram nesses estudos é a possibilidade de que a fáscia possa "guardar memórias" – especialmente relacionadas a traumas físicos e emocionais. Mas até que ponto esse conceito é fundamentado pela ciência?
O artigo de Paolo Tozzi, MSc, BSc (Hons) Ost, DO, PT, publicado no Journal of Bodywork & Movement Therapies em 2014, explora essa questão de maneira detalhada. Tozzi e sua equipe analisam a fáscia sob o ponto de vista de sua estrutura, fisiologia e interações com o sistema nervoso, sugerindo que este tecido possui a capacidade de registrar e reter informações referentes às experiências vividas pelo corpo. Neste contexto, a ideia de "memória fascial" refere-se à maneira como a fáscia pode reter padrões de tensão e postura resultantes de traumas ou experiências emocionais profundas.
O Que é a Fáscia? Uma Visão Mais Ampla
Para entender como a fáscia pode potencialmente guardar memórias, é importante primeiro compreender sua estrutura e função. A fáscia é composta por uma rede tridimensional de fibras de colágeno e elastina, imersa em uma substância fundamental que inclui água, proteínas e polissacarídeos. Essa estrutura única permite que a fáscia seja simultaneamente resistente e flexível, adaptando-se aos movimentos do corpo e suportando tensões mecânicas.
Ela envolve praticamente todas as estruturas do corpo, formando uma espécie de "rede contínua" que integra cada órgão, músculo e osso. Essa interconectividade é o que faz com que alterações em uma parte do corpo possam impactar outras partes. Por exemplo, uma lesão no pé pode alterar a postura e, com o tempo, causar dores nas costas, devido à maneira como a tensão se distribui ao longo da fáscia.
A Fáscia e o Sistema Nervoso: Interações Profundas
O artigo de Tozzi enfatiza a rica inervação da fáscia, especialmente em termos de mecanorreceptores e nociceptores – receptores sensíveis à pressão, estiramento e dor. Essa densa rede de terminações nervosas torna a fáscia um órgão sensorial vital, capaz de detectar e responder a estímulos físicos e emocionais.
Além disso, Tozzi discute o papel do sistema nervoso autônomo (SNA) – que regula funções involuntárias como batimentos cardíacos, respiração e digestão – na interação com a fáscia. O SNA responde aos estados emocionais e de estresse, ativando ou relaxando o corpo conforme necessário. Quando o corpo experimenta um trauma ou um evento emocionalmente significativo, essa resposta autônoma pode levar a uma alteração na tensão fascial. Essa tensão, então, pode ser "armazenada" no tecido fascial, perpetuando padrões disfuncionais que podem ser sentidos como dor crônica ou restrição de movimento muito tempo após o evento original.
Memória Tecidual: Evidências Científicas
O conceito de "memória tecidual" baseia-se na ideia de que o corpo é capaz de "lembrar-se" de traumas e experiências anteriores por meio de alterações em seus tecidos. Isso é particularmente relevante no campo da fáscia, devido à sua capacidade de adaptação e remodelação. O estudo de Tozzi destaca que eventos traumáticos – como lesões físicas ou choques emocionais – podem causar mudanças duradouras na fáscia, levando a alterações na postura e padrões de movimento.
Essas alterações podem se manifestar de diversas maneiras: dor crônica, rigidez muscular, restrição de movimento e até sintomas viscerais (relacionados a órgãos internos). Terapeutas manuais, como osteopatas e fisioterapeutas, frequentemente relatam que ao liberar essas tensões fasciais, os pacientes experimentam uma "liberação emocional", o que reforça a ideia de que essas memórias podem estar armazenadas nos tecidos.
Fáscia e Traumas Emocionais: Uma Conexão Corpo-Mente
A relação entre fáscia e traumas emocionais é particularmente intrigante. A pesquisa sugere que, em momentos de estresse ou trauma, o corpo pode adotar posturas defensivas ou protetivas que são mediadas pelo sistema nervoso autônomo. A tensão gerada nesses momentos pode ser registrada na fáscia, que "congela" o trauma em seu tecido. Esse processo pode ocorrer inconscientemente, com o corpo criando uma "cicatriz" emocional nos tecidos físicos.
Um exemplo comum é a relação entre o estresse psicológico e a tensão no pescoço e ombros. Quando uma pessoa experimenta uma situação emocionalmente desafiadora, é comum que essa área do corpo se contraia, gerando tensão na fáscia que envolve os músculos. Se essa tensão persistir ao longo do tempo, ela pode se transformar em dor crônica, criando um ciclo de sofrimento físico e emocional.
Terapias Manuais e Liberação Fascial
A ideia de que a fáscia pode guardar memórias é fundamental para diversas abordagens terapêuticas manuais, como a osteopatia, microfisioterapia, liberação miofascial e outras técnicas de manipulação corporal. Essas terapias buscam "liberar" as tensões armazenadas na fáscia, promovendo não apenas alívio físico, mas também uma liberação emocional.
Durante uma sessão de liberação miofascial, por exemplo, o terapeuta aplica pressão suave e prolongada sobre áreas de tensão fascial, buscando restabelecer a flexibilidade e a fluidez do tecido. Muitas vezes, os pacientes relatam que, ao liberar a tensão física, também experimentam uma catarse emocional, como sensação de alívio ou mesmo a recordação de eventos passados. Isso apoia a ideia de que a fáscia poderia, de fato, estar envolvida no armazenamento de memórias emocionais.
Novos Horizontes de Pesquisa
Embora a ciência sobre a fáscia e a memória corporal ainda esteja em desenvolvimento, o trabalho de Tozzi e outros pesquisadores aponta para um campo promissor e multidisciplinar. Estudos contínuos estão explorando como os aspectos biomecânicos e neurossensoriais da fáscia interagem com o sistema nervoso central e periférico. Avanços na neurociência e na biologia celular poderão, no futuro, esclarecer ainda mais os mecanismos pelos quais a fáscia pode registrar e reter informações sobre experiências vividas pelo corpo.
Conclusão: A Fáscia Como Arquivo de Experiências
A pesquisa de Paolo Tozzi no Journal of Bodywork & Movement Therapies sugere que a fáscia não é apenas um tecido passivo, mas um componente ativo no registro de experiências físicas e emocionais. Embora o conceito de "memória fascial" ainda não seja completamente compreendido, as evidências indicam que a fáscia tem um papel crucial na manutenção de padrões de tensão e postura que podem estar relacionados a traumas passados.
Compreender essa capacidade única da fáscia de armazenar memórias abre novas possibilidades para abordagens terapêuticas que buscam integrar o corpo e a mente, promovendo a cura em um nível profundo. A microfisioterapia e outras técnicas manuais podem ser eficazes ao tratar não apenas a dor física, mas também as cicatrizes emocionais armazenadas nos tecidos do corpo.
Referência:
TOZZI, Paolo. Fascial release effects on the autonomic nervous system: A literature review and clinical considerations. Journal of Bodywork & Movement Therapies, v. 18, n. 4, p. 600-607, 2014. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1360859214001161. Acesso em: 16 out. 2024.
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Dr. Marcello Alencar
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